500 dias atrás eu não era um dos editores do Mais Esports. Ainda como um freelancer, ofereci para fazer a análise completa do recém-lançado Warcraft 3: Reforged para três dos maiores portais de games no Brasil que eu tinha contato. Joguei mais de 500 partidas na fase Beta, revirei o jogo de cabeça para baixo por mais de 18 anos e já fazia streams dele na Twitch há mais de 12 meses.
Sem falar que tenho mais de 1,3 mil vídeos no meu canal no YouTube sobre Warcraft 3, incluindo partidas, guias e narrações de jogos de campeonato.
Conhecimento não foi o que faltou para que algum deles aceitasse essa proposta, imagino. Provavelmente eles não queriam ficar frente a frente com uma enxurrada de merda sendo lançada pra cima da Blizzard quando o jogo estourou com a menor nota pelos usuários do Metacritic.
Não sei se faltou força de vontade para peitar a polêmica, se não quiseram queimar relações com a empresa ou se foi uma decisão interna de cada um deles devido ao jogo ter sido lançado com muita cara de “incompleto”. E você sabe? Não importa mais. O estrago já foi feito.
O que importa é que até hoje eu respondo perguntas durante minha transmissão ao vivo se vale a pena comprar o jogo. Se os erros foram melhorados. Se o cidadão vai curtir o jogo. Parte dessas dúvidas existem pela falta de análises e cobertura da mídia. Parte disso também é por conta da própria Blizzard ter se relacionado com o jogo da forma mais sombria possível por anos.
E, dentre minhas respostas, chama a atenção um detalhe. Eu sempre falo que, se for pela Blizzard, não vale a pena comprar. Mas se for pela comunidade, aí é outra história.
Quando foi que um jogo se tornou tão diferente assim a ponto de eu recomendá-lo pelas pessoas que jogam ele e não pelo jogo em si? Depois de anos fazendo review de games, Warcraft 3: Reforged me pareceu o primeiro caso que merece duas notas.
Uma pelo jogo.
E outra pela comunidade.
E, na minha cabeça, eu já sabia qual das duas seria a maior.
O jogo pela Blizzard: Warcraft 3 aos trancos e barrancos
Analisar um videogame é um trabalho cansativo e, muitas vezes, ingrato. Você pode escrever muralhas e muralhas de texto explicando cada minúcia do jogo mas parece que tudo o que vai importar para o gamerzão moderno é a notinha redonda e destacada ao final. Você pode escrever a maior maravilha da sua vida que só umas 12 pessoas vão realmente chegar até ali com seus olhos sedentos por uma boa argumentação. Inclusive: oi galera. Vocês são lindos.
Pra quem acompanhou o Warcraft 3: Reforged do anúncio até hoje, passando pela fase Beta e o lançamento, ficou somente uma sensação e ela apenas: a que o desenvolvimento do Reforged foi uma completa bagunça. E isso em vários níveis.
Do administrativo ao marketing, caindo muita responsabilidade na cabeça do pobres e escassos desenvolvedores que tiveram que operar verdadeiros milagres em uma engine ultrapassada de 2002. Por isso os atrasos. Por isso a demora de lançar um Beta que era prometido para o início de 2019, mas que só chegou no final de setembro do mesmo ano.
Tudo isso em um jogo que deveria ser de 2020. Mas nunca foi. Nem mesmo quando ele foi divulgado na BlizzCon 2019. Pouco tempo depois do anúncio tive a oportunidade de jogar aquela demo e constatei isso. Quando digitei “/fps” e vi que, por trás de todo o visual bonitinho, ainda era a mesma plataforma do Warcraft 3: The Frozen Throne. Não era um remake, era um remaster.
Mas não era o que parecia, não é mesmo? Parecia que tudo seria refeito. Até mesmo as cinemáticas — algo que a própria Blizzard constatou, em plenas entrevistas para a mídia na BlizzCon 2019, que todas seriam apenas tratadas em HD do original de 2002. Mas porque não deixou isso claro quando anunciou? Até esse ponto, todos acharam que tudo seria refeito.
Ou também que tal avisar quem tinha Reign of Chaos ou The Frozen Throne originais que eles poderiam ir ao Reforged gratuitamente, mas ficariam restritos aos gráficos antigos? De um dia para o outro a Battle.net dos dois jogos foi desativada e ficou por isso. Sem tutoriais. Sem avisos públicos. Só dúvidas.
E o infernal começava a rasgar o céu de Reforged.
Não sei se é justo pesar tanto os erros do marketing ao analisar um produto, mas Warcraft 3: Reforged foi um caso único. Tão único que esse texto sequer existiria dessa forma se não fosse por eles. É inevitável.
Mas vamos falar sobre o que temos hoje em nossas mãos.
Análise do jogo e os três públicos de Warcraft 3
500 dias para escrever um review. Tá aí um espaço de tempo que jamais eu vi nas mãos de um jornalista de games. Mas eu vivenciei esse jogo em um nível que só um completo maníaco o faria. Todas essas linhas são resultado disso. Mas é claro que você pode pular tudo isso — afinal, muito possivelmente não serei a pessoa que irá mudar a sua concepção de que o jogo está ruim. Esta é a seção para quem está ainda em dúvida.
Se você quer jogar Warcraft 3 e chegou até aqui, provavelmente gosta do jogo por um dos três pontos a seguir:
- A campanha;
- O PVP clássico;
- Os mapas customizados;
Se você gosta da campanha, o Reforged é uma experiência divertida — mas sequer é inédita. Claro que temos uma ou outra novidade, como efeitos diferentes em momentos específicos da história, umas missões a mais aqui ou ali, mas o roteiro mal foi tocado. A única mudança realmente grande é o jogo dublado pela primeira vez, o que nem deve ser uma surpresa se você quiser jogar o original em inglês.
Eu me diverti nesse ponto, mas foi pela procura de minúcias entre as versões, pelos detalhes do gráfico novo e pela dublagem nova do que pela experiência completa da campanha. Inclusive, zerei ela inteiramente no Difícil e parece que, em momentos insanos do jogo antigo, como a última missão de Reign of Chaos, o remaster está mais fácil. Parece que a máquina está pegando leve com você. Não era assim.
E ah, não há recompensa alguma por zerar a campanha. Você desbloqueia uns retratinhos e tal, né… Mas eles podem ser desbloqueados da mesma forma se você usar cheat do começo ao fim do jogo. Desculpa estragar com sua alegria.
Se você gosta do PVP clássico, saiba que aqui mora a maior parte dos problemas. E não é por causa do gráfico não, mas sim pela estrutura bem precária que foi dada ao jogo.
Não há como customizar hotkeys dentro do jogo. Ainda não existe um sistema ranqueado. Ainda não existe um sistema de perfil ou de clãs. Não encontramos rotação de mapas. Não tem servidor no Brasil dentro da Battle.net. Probleminhas entre os gráficos clássicos e Reforged sempre aparecem para incomodar um ou outro jogador.
Embora existam patches de balanceamento, nada aponta para conteúdos novos. E, sinceramente, se eles existirem, podem não passar de uns itens novos ou um herói na taverna. No máximo.
Nagas? Esqueça.
Isso sem falar que algumas funções antigas do The Frozen Throne sumiram na transição para o Reforged. Os campeonatos automáticos estão entre eles, sem falar na possibilidade de salvar partidas multiplayer para dar loading depois.
Se você gosta dos mapas customizados, não há muitos atrativos se você olhar especificamente para os gráficos novos. Claro que a comunidade faz um trabalho incrível nesse aspecto e continua upando dezenas de mapas por dia no EpicWar e no HIVE Workshop. São mapas de terror, sobrevivência, Tower Defense e outros customs dos mais bizarros.
Mas a maior parte deles ficam “feios” ou no mínimo estranhos com os gráficos do Reforged. Até porque eles não são feitos com o gráfico novo em mente. E repito: você vai sofrer com alguns dos problemas citados logo acima no PVP competitivo, especialmente com a ausência de servidor no Brasil.
E ah, aquela discussão sobre a Blizzard ter mudado as políticas dos mapas? Até agora não teve impacto nenhum entre os modders ocidentais. Ainda tem mapa em desenvolvimento de Star Wars, Senhor dos Aneis, Super Mario e até mesmo os animes mais loucos trocando porrada. Isso não mudou, e provavelmente não vai mudar. Não por aqui.
Se você quer saber só dos gráficos, o visual de Warcraft 3: Reforged é interessante em qualidades altas, mas chega a ser muito estranho na situação contrária. Até mesmo com gráficos no talo algumas escolhas de cores e luzes são bem questionáveis. A comunidade já mostrou isso, e você verá tudo isso mais adiante.
Mas saiba que eu já larguei mão do gráfico Reforged há algum tempo. É legal no início, bonito em algumas ocasiões se você quer realmente valorizar uma experiência nova. Jogar a campanha, um mapa da sua infância, saborear uma cinemática.
Mas, para quem joga constantemente, ele é mais uma inconveniência do que um benefício. E boa parte da comunidade hardcore segue nessa mesma pegada. Se eu quero treinar, assistir um campeonato ou jogar na stream, é gráfico clássico na tela. E bola pra frente.
O que foi feito pela Blizzard até agora
A linha do tempo do lançamento até agora é bem modesta. Não há mudanças grandes dentro do jogo. No máximo um ou outro menu que já existia no antigo e que agora está de volta. E um pouco de balanceamento para os fãs mais ligados ao competitivo.
Alguns patches foram aplicados, muitos para resolver os problemas de performance, bugs e otimizar os gráficos do Reforged. O novo visual está ligeiramente mais leve na perspectiva de gameplay principalmente comparado com a fase Beta, mas não te salva de longos tempos de carregamento. E, se seu PC é simples, vai continuar pesado. Vai por mim.
No geral: 500 dias depois, o que ainda falta para o game segundo as promessas da Blizzard antes mesmo do lançamento estão listados a seguir.
- Sistema ranqueado
- Sistema de clãs
- Sistema de perfil
- Campanhas customizadas
- Skins para os heróis
- Resgate do perfil do Frozen Throne
Praticamente 100% das promessas ainda não foram cumpridas, aliás.
E continuamos, assim como 500 dias atrás, sem previsões para isso chegar. As postagens nos fóruns não dão previsão para nada. Ninguém fala nada. BlizzCon online de 2020 passou em branco com mais novidades para Heroes of the Storm, um jogo de 2014, do que Warcraft 3: Reforged, um títulos que eles acabaram de lançar.
Sabemos que a equipe por trás do desenvolvimento foi dissolvida e que a Vicarious Visions, responsável por grandes remasters da indústria, está assumindo projetos na Blizzard. Inclusive, ela está com Diablo II: Ressurrected em suas mãos. E meu sonho é que alguém assuma algo do Warcraft 3: Reforged por lá.
Mas ninguém comunica nada. O mesmo aconteceu durante todo o ano de 2020. Do nada surgia um patch, a chama de esperança ressurgia e pouco tempo depois tudo voltava ao frio solitário como se Frostmourne rasgasse sua carne.
Mesmo sem qualquer obrigação profissional para isso, quanto mais eu jogava Warcraft 3: Reforged, mais o meu painel gamístico empurrava a suposta nota do jogo para baixo. Era sempre um bug aqui, um visual estranho acolá ou um erro que acontecia ocasionalmente e que incomodava, desacelerando o gosto que eu tinha pelo jogo.
Só uma coisa me fez acelerar de novo: a comunidade.
Eu nunca vi os fãs salvarem tanto um jogo.
A comunidade está fazendo o impossível
O Warcraft 3 sofreu duros golpes no ano passado. Arthas estaria no chão antes mesmo de assumir o seu posto como Lich King se dependesse de tudo o que aconteceu até agora. Mas foi a comunidade quem levantou o garoto e o colocou de volta no seu trilho corrompido pelas trevas.
Inclusive, as maiores e melhores novidades em décadas de jogo vieram das mãos dos fãs.
Poucos meses depois do lançamento do Reforged, e com a demora da Blizzard em lançar um sistema ranqueado, alguns desenvolvedores criaram o seu próprio sistema de ligas. Surgia aí a W3Champions, que funcionava no início como uma opção alternativa ao matchmaking da Blizzard. E era restrito ao 1v1.
Eles usavam, inclusive, os servidores da própria Blizzard para realizar a partida com um observador somente para registrar quem venceu ou perdeu o jogo. Atualmente, os servidores da Battle.net são distribuídos em um servidor na Ásia, um na Europa e um na América do Norte — lembre-se disso para o próximo parágrafo.
Em meses, eles expandiram para 2v2, 4v4, FFA (ou Todos contra Todos) e começaram a abrir o seu próprio sistema de servidores. São 18 servidores conectados, incluindo um no Brasil. Um servidor nacional chegou finalmente para o Warcraft 3 depois de 18 anos do lançamento original de Warcraft 3: Reign of Chaos. E veio pelos fãs.
Hoje, a W3Champions tem um cliente próprio, abrindo um menu por cima do Reforged com chat e todas as opções de matchmaking. Já trouxeram modos ranqueados para mapas famosos da comunidade, como Footmen Frenzy e Legion TD, além de mapas com as regras exclusivas do Reign of Chaos. E um sistema de torneios está para chegar em breve.
Virou um mundo a parte por cima do caos que foi o Reforged. Um ponto de encontro de alívio para quem ainda tem esperanças.
E ah, eles tem um próprio Patreon para quem quiser ajudar a manter toda essa estrutura.
Além da W3Champions, um dos projetos que também chama a atenção é o Quenching Mod. Basicamente, ele melhora o visual do Reforged e inclusive entrega algumas coisas que até hoje estão em dívida pela Blizzard, como a possibilidade de escolher skins e jogar as campanhas personalizadas do jogo.
Confira um comparativo entre os visuais no vídeo logo abaixo.
Chega a ser impressionante o resultado.
Se quiser mais um pouco de comparativo em imagens, segue aí.
Este é o gráfico Reforged original, mas na configuração mais baixa.
E, aqui, temos o gráfico Quenching ativado.
E, por mais incrível que pareça, o que torna o efeito do Quenching superior ao Reforged original estão nas luzes e nos terrenos. Ele não muda muito as texturas do jogo. Mas, com um bom reajuste na iluminação, os chineses simplesmente tornaram o gráfico do jogo muito mais atrativo.
E tudo isso em pouco tempo. Eles foram tão longe que, mesmo que a Blizzard lance o sistema ranqueado ou melhore os gráficos, a empresa já está completamente ultrapassada pelo trabalho que os fãs fizeram.
E fica a pergunta: compensa competir com eles a esse ponto?
O veredito
Eu sei que vocês gostam de notinhas no final de uma análise de videogame.
Já passei por mil e uma discussões do quanto notas são necessárias no jornalismo de games, mas aqui acho que ela é uma forma de mostrar como o produto é diferente com e sem a atuação da comunidade. Então eu preparei esse comparativo para vocês.
É uma representação bem visual de tudo que falamos até agora.
Pontos positivos do Warcraft 3: Reforged da Blizzard
- Campanha tem adições interessantes de visual e jogabilidade, dando um fôlego razoável à história de Warcraft;
- Primeira vez dublado e traduzido para português, inclusive com boas vozes;
- Suporta (boa) parte dos mapas antigos do Warcraft 3: The Frozen Throne;
- Pelo menos temos balanceamento oficial agora.
Pontos negativos do Warcraft 3: Reforged da Blizzard
- Marketing do jogo vendeu uma ideia diferente do produto final, especialmente relativo aos visuais;
- Visual do Reforged é bem questionável, principalmente em qualidades mais baixas;
- Menu do jogo é pesadíssimo, meu senhor amado;
- Tempo de carregamento é insano com gráfico novo, levando 10 vezes mais tempo comparado com gráficos clássicos;
- Gráficos do Reforged são tão pesados e inconvenientes que só vale ativá-los em ocasiões especiais;
- Vários problemas de infraestrutura, principalmente envolvendo pouco número de servidores e funções adicionais (sequer tem como customizar hotkeys dentro do jogo);
- 500 dias sem modo ranqueado, clãs e outras promessas — e ninguém fala nada.
Pontos positivos do Warcraft 3: Reforged da comunidade
- Servidores espalhados pelo globo na W3Champions, permitindo jogos mais suaves e com pings menores que os fornecidos pela Blizzard;
- W3Champions oferece maneira fácil de customizar hotkeys;
- Função de zoom out para mapas oficiais;
- Reconectar na partida caso a internet oscile, uma função que por algum motivo sumiu na mudança entre TFT e Reforged;
- Sistema ranqueado com temporadas e campeonatos, incluindo aos poucos os mapas da comunidade;
- Servidor no Brasil depois de 18 anos por conta da W3Champions;
- Gráficos completamente reajustados graças ao mod gráfico Quenching;
- Campanhas personalizadas em visual novo no mod gráfico Quenching;
- Skins de heróis como era prometido graças ao Quenching.
Pontos negativos do Warcraft 3: Reforged da comunidade
- Não terem o devido reconhecimento pela Blizzard;
- Não posso cobrá-los por nada, não é mesmo? Estão fazendo tudo por completo amor;
- Os demais problemas do Reforged.
Parece estranho falar, mas a melhor coisa que já aconteceu para o Warcraft 3 na última década foi o Reforged. Não pelo jogo, mas é óbvio que não — mas pelo que a comunidade fez para salvá-lo. Belas flores nasceram da enxurrada de merda jogada em cima desse quintal. Mas exigiu que boas pessoas plantassem sementes ali.
Ao fim, mesmo assim eu sei que Warcraft 3, o jogo que me fez entrar nos esports, respira por aparelhos. E todas essas máquinas são bancadas pela própria comunidade. Por mil e um fãs que trabalham e colocam as esperanças que ele continue lá em algum lugar, vivo e ainda trazendo boas memórias a quem conheceu um clássico jogo de estratégia.
Uma hora eu também sonho que um dia ele acorde de um coma de quase uma década de esperanças.
É por isso que todo dia eu me sento ao lado da cama do hospital.