Uma imagem de Croc em pé na frente de um bar escrito Boas memórias em coreano numa rua a noite na Coreia do Sul

O bar das Boas Memorias

This text is also available in English: The bar of Good Memories

Dia 30 de agosto de 2024, 15, Gaming Office da LOUD

Debaixo de um sol de 30 e poucos graus, me espanta Croc estar usando uma blusa preta.

— Já se acostumou com esse clima maluco de São Paulo? - pergunto.
— Ah, já estou aqui há três anos e meio, né? — o… ex-Caçador da LOUD responde.

Um pequeno silêncio ocupa a tarde na Vila Madalena. Confesso que, vindo para a conversa com Croc, qualquer caminho que eu seguisse parecia me levar a um final triste. Após quatro títulos consecutivos nacionais de League of Legends pela LOUD e uma despedida melancólica do CBLOL, o jogador está praticamente se aposentando.

Pior, não por escolha dele.

É lei na Coreia do Sul que todos os homens prestem serviço militar obrigatório até uma certa idade, e por mais que ele tenha tentado, o tempo de Croc havia acabado.

Interrompo o silêncio.

— O que vai fazer depois de... sabe?
— Não sei ao certo - diz ele, olhando longe. — Quem sabe eu não abro um bar.
— Um bar?!
— Ah, não sei, mas seria legal, não é?
— Seria! — digo, abrindo um sorriso. — E qual seria o nome desse bar?
— 좋은 추억, ou, em português, “Boas Memórias”.

Quem assume o texto a partir de agora é o Croc.


Entendo que, para quem é brasileiro, falar sobre o serviço militar obrigatório da Coreia parece ser um assunto sensível, mas não é. Toda a nossa vida, desde crianças, sabemos que o tempo chegará para todos os homens servirem ao exército, da mesma forma que todos os homens brasileiros precisam se alistar quando fazem dezoito anos.

A maioria dos meus amigos de infância tirou logo da frente deles a interrupção na vida que é ter que servir o exército por 18 e 21 meses. Convivi muito tempo com as mensagens deles falando sobre sua experiência, e até mesmo alguns jogadores que conhecia que tiveram que passar por esse momento também. É difícil largar o mouse depois de tanto tempo e voltar à caneta e ao papel, ou pegar em uma arma.

Para tirar logo da frente: aceitar que preciso fazer isso não torna as coisas mais fáceis. É uma perda de tempo. Fico bravo, mas no final é o que é, não tem mais o que eu possa fazer.

Talvez vocês possam pensar que isso me impactou durante este último Split, mas de verdade, não impactou. Era mais chato que me perguntassem disso toda hora, mas eu mesmo não pensei. A única coisa que tentei fazer foi adiar por pelo menos mais um ano, mas, se não desse, tudo bem, eu sabia que teria que ir. Sou um cara muito centrado, o que falam sobre mim e as coisas que estão ao meu redor me afetam pouco, seja o exército, sejam as críticas, sejam as garotas, enfim, quando eu coloco meu foco em algo, ninguém me tira da minha cabeça.

Muitos Splits, sem ser este, poderiam ter sido meus últimos antes do exército. Acabou que desta vez era de fato verdade, e com isso sei que o primeiro capítulo da minha vida também terminou.

Mas gostaria de falar mais sobre esse primeiro capítulo, e as memórias que trago com ele.

O grupo dos coreanos que jogam no Brasil organizado por Croc
O grupo dos coreanos que jogam no Brasil organizado por Croc

Essa força e foco que eu tenho não vem da cultura coreana, e sim de ser um estrangeiro. Sei que, até hoje, muitas pessoas podem pensar que jogadores coreanos ou de outros países vêm para o Brasil para farmar dinheiro ou para ter um caminho mais “fácil” para o MSI ou Mundial, mas isso não é verdade.

Vim do outro lado do mundo. São 30 horas de viagem da minha casa até aqui, longe da minha família, longe dos meus amigos e de praticamente tudo que conheço. Não sei se isso se aplica a todos os jogadores, claro, mas todos vêm para cá para mostrar algo e vencer. Você pode pensar que caras como Yuri, Guard e Hades não se esforçaram muito, mas o Yuri, por exemplo, dizem que ele tiltava muito na Solo Queue e até brigou com o Kiari, mas, no final, você vê que ele tentou muito, até chegamos à final contra a RED.

Hoje em dia, sei que todos que estão no Brasil, como Kabbie e Seize, realmente tentaram muito, por mais que não tenha funcionado, e fico feliz. O Route é um cara que tem uma personalidade muito diferente: é tímido, não fala muito com a torcida, mas é um cara que se dedica ao máximo sempre.

Para mim, este sempre foi o principal legado que quis deixar no Brasil. A maneira como as pessoas enxergam os jogadores coreanos.

No meu primeiro ano no Brasil, na Rensga e Miners, eu me sentia muito sozinho. É uma mudança muito grande do que conhecemos. Chegando perto do final do meu Split com a Miners, chamei o Parang e o Wiz para jantar, e começamos a conversar, e aquilo acalmou meu coração e me deixou feliz.

Há um tempo, criei um grupo com todos os jogadores coreanos que estão no Brasil, Shrimp, Wizer, Kuri, Zzk, enfim, conversamos muito sobre várias coisas, falamos merda, brincamos como amigos mesmo. Quero ser lembrado por ser este cara que tentou conectar os dois países, sabe?

Para mim, o meu maior legado não serão os títulos que conquistei, e sim o esforço que fiz para mudar a maneira como os jogadores coreanos são vistos aqui no Brasil. Mas, para ser de fato um legado, não sou eu que tenho que dizer isso, e sim a comunidade.

Lembro que, quando o Minerva saiu da Rensga, ele abriu uma live falando coisas ruins sobre como o Trap trabalhava na equipe, e aquilo me fez criar esse grupo. Falei: “pessoal, vamos tentar de tudo para sermos competitivos. Tentem o seu melhor, e se isso não for o suficiente, não tem problema, mas não desistam ou piorem a imagem que as pessoas têm de nós”.

Além disso, a Coreia é um país pequeno, e quem joga LoL tem muitas coisas em comum. Conhecemos praticamente todos os jogadores bons da Solo Queue pelo nick. Pode ser assustador tomar a decisão de se mudar para o Brasil, então assim que conheço alguém que está nesse impasse, eu adiciono ele e tento fazer essa ponte desde o começo, para que não se sinta sozinho e saiba que não é só sobre dinheiro, e sim dar o seu melhor.

O League of Legends no Brasil não é um jogo de cavalheiros; os jogadores gritam e se provocam, e isso cria um espetáculo para a transmissão e a torcida. Lá no começo da LCK, tínhamos jogadores assim, como Piglet e imp, e era divertido. Hoje, todos estão humildes demais, com medo de provocar e depois perder o jogo. No Brasil, mesmo caras que não são assim, como o Route, se encaixam porque são competitivos. No final, temos mais em comum do que as pessoas podem pensar.

E o coração disso tudo é a comunidade. Passei um ano na Oceania, e o motivo de não ter feito o mesmo trabalho lá sobre jogadores coreanos que fiz no Brasil é porque é uma região muito pequena, com pouca torcida, poucos jogadores. A comunidade faz tudo ter sentido aqui, desde as equipes investirem, de estrangeiros virem para cá até o show que damos dentro e fora do jogo.

E é por causa da comunidade que eu fiquei.

No meu auge na LOUD, recebi propostas para a LCK e também LCS. Só fiquei no Brasil porque já havia me conectado muito com a LOUD e meus companheiros, mas também por como a torcida da LOUD e a comunidade brasileira me abraçou.

Um desenho do retrato na mesa de Croc

Essa imagem foi um presente de uma torcedora para mim, e é a única coisa em cima da minha mesa aqui no office da LOUD além do meu mouse e teclado.

Não acho que a pessoa parou o seu tempo para me dar este presente porque ganhei quatro títulos de CBLOL, e se você parar para ver, não há um troféu do CBLOL na imagem. Além disso, os torcedores não estão com a camisa da LOUD, e sim do Brasil. Recebi esse presente durante a fase de grupos deste último Split, quando as coisas não estavam tão boas.

Quando olho para ela, me traz o sentimento de segunda casa.
Quando olho para ela, sinto emoções diferentes. Felicidade, nostalgia, tristeza…
Quando olho para ela penso que, quando as pessoas se lembrarem de mim, gostaria que pensassem no cara coreano que veio para cá jogar o CBLOL. Um cara meio legal, mas que entregou tudo de si. Que, mesmo que tenhamos nossos problemas com ele, nós o amamos, e ele será sempre parte de nós.

Quando a minha última partida no CBLOL terminou, demorei um tempo para sair do palco e da zona mista porque quis abraçar e agradecer a todos os fãs que estavam presentes, já que poderia ser a última vez que eu os via. Se não existir fãs, não existe CBLOL.

Por que jogamos se não há ninguém para nos assistir?
Por que perdemos se não há fãs para chorarem junto conosco?
Por que vencemos se não há fãs para comemorar junto com a gente?

Os fãs são mais importantes do que os jogadores, tanto na LOUD quanto nos esports. É por isso que me doeu tanto terminar este Split da maneira como terminamos. Pelos fãs e pela minha equipe.

Não tenho medo de muitas coisas na minha vida, mas neste Split tive problemas com tentar me manter motivado para continuar sendo competitivo e vencer novamente. Por mais que tenhamos vencido o CBLOL quatro vezes seguidas, continuávamos a ter os mesmos resultados internacionais decepcionantes.

O Jarvan IV de Croc
O Jarvan IV de Croc

Até o Mundial 2023 acabar, eu estava com muita vontade de vencer o CBLOL, mas o desastre que aconteceu lá me afetou muito. Mesmo quando vencemos a Primeira Etapa de 2024, eu percebi que não tinha sentido o mesmo gosto da vitória, e talvez por isso não tenhamos conseguido jogar melhor neste último Split, principalmente eu.

Minha maior motivação sempre foi fazer o melhor para a comunidade brasileira e para os meus companheiros, especialmente o tin e o Robo. O ano passado foi um baque, e neste MSI, que foi a nossa maior chance de chegar à Fase de Grupos e dar este presente aos brasileiros, tínhamos tudo para conseguir algo melhor. Tivemos sorte no grupo, a GAM estava com completes, tivemos treinos contra algumas das melhores equipes… não consigo entender como não fizemos melhor. Por que não jogamos como jogamos no Brasil?

Depois do MSI, comecei a perder a motivação. É claro que eu queria ganhar, mas tudo parecia mais difícil, desde jogar até resolver nossos problemas… Foi uma pena.

Fui um dos jogadores estrangeiros que ficou mais tempo no Brasil na história, e principalmente ao lado do tin e do Robo. Passar todo o tempo com esses caras, e também com Brance, Route, Ceos, RedBert e todo mundo da LOUD, me fez criar uma conexão com eles tão grande que eu faria de tudo para vencermos e irmos bem internacionalmente.

Lembro que, quando entrei, tínhamos só um objetivo: vencer. Neste Split, é claro que queríamos vencer também, mas pulamos passos, e no fim não conseguimos. Isso não é algo que senti no meio do campeonato, mas só agora olhando para trás.

Quando subi as escadas do estúdio do CBLOL depois de me despedir dos fãs pela última vez, ficamos em silêncio por um tempo, e todo o filme da nossa jornada passou na minha cabeça. Ver o RedBert chorando, o Route olhando para baixo e, principalmente, o tin e o Robo sem palavras naquele momento me machucou. Muito.

Pensei em toda a nossa história na van de volta para o office da LOUD, e lá escrevi as mensagens que vocês viram no Twitter para cada um deles. Um pedaço de mim ficou naqueles tweets, e tudo bem, porque sei que levarei comigo uma parte de cada um deles para o resto da minha vida, para me completar.

Croc, Robo e Tinowns juntos

Quando vocês lerem este texto, eu já estarei na Coreia. Meu plano é ir para o exército no começo do ano que vem, então ainda terei um tempinho para relaxar e pensar em todos os momentos e lembranças que tive no Brasil.

Foram quase quatro anos de dedicação, a grande maioria deles pela LOUD conquistando títulos, viajando pelo mundo com meus amigos e jogando League of Legends. Comecei a jogar LoL em 2012, ou seja, são doze anos jogando o mesmo jogo praticamente todos os dias. Estou cansado. Quero fazer algo diferente, talvez visitar uma universidade e ter vivências novas, mais normais. Não acho que voltarei a ser jogador profissional no futuro.

Eu gosto de basquete, joguei bastante quando estava no colegial, mas não podia jogar enquanto era pro player pois poderia quebrar um dedo.

Acho que vou adotar um animal de estimação, um cachorro. Sou um cara de cachorros.

Quem sabe eu não abro um bar.

Sou forte para álcool, consigo me virar bem (mas não é o que o Croc do dia seguinte pensa quando está morrendo de ressaca). Gosto de bebidas, principalmente soju, cerveja e Cosmopolitan, uma bebida que bebi pela primeira vez com o tinowns. Quem sabe eu não aprendo a fazer caipirinha também?

Eu seria aquele tipo de dono de bar que serve as pessoas e vai de mesa em mesa para ver como todos estão se sentindo, se estão gostando. O nome do bar seria “Boas Memórias”, e talvez eu perguntasse para os meus clientes quais são boas memórias que eles têm de suas vidas. Ou talvez eu deixaria um livro e uma caneta na entrada do bar, para que possam desenhar ou escrever uma boa memória que tenham.

Como primeira pessoa no bar, a primeira coisa que eu escreveria seria:

"A história do jogador coreano que se encontrou no Brasil. Até a próxima vez!"

Assinatura do Croc

Com um abraço e um agradecimento especial ao Croc, me despeço do maior jogador estrangeiro da história do League of Legends brasileiro, tetracampeão do CBLOL.

Entro no meu carro e demoro para ligá-lo. Não foi uma conversa comum. Principalmente pelo fato de que cheguei esperando sair triste, mas saio com felicidade no coração. Feliz por ter acompanhado, como torcedor, a trajetória de um estrangeiro que entendeu mais do Brasil do que muitos brasileiros, que se entregou de corpo e alma por uma causa que poucos se importavam, e que mesmo com taças empilhadas em sua estante, considera seu legado as pessoas, a comunidade, os companheiros de equipe e os jogadores que vêm do outro lado do mundo para tentar.

Não para ganhar dinheiro. Não para jogar por ego. Não por um atalho para o Mundial.

Vem para vencer.

E, no LoL e na vida, o Croc venceu.

Bruno "LeonButcher" Pereira

Jornalista de esports, acompanha o cenário competitivo brasileiro desde 2011. Ex-narrador de League of Legends, trabalhou na Riot Games, Omelete Company e atualmente é editor-chefe do Mais Esports.