Cuiabá é uma terra boa, receptiva. Eu tenho mais tempo de vida em Cuiabá do que no Rio Grande do Sul, cheguei com 21 anos aqui, estou com 59, então vou sempre admirar esta terra. Se consegui ser o que sou e estar onde estou, é graças a essa terra. Lógico, trabalhando e tudo mais, mas sou agradecido à aqui. Não esqueci do Rio Grande, mas sou extremamente agradecido a Cuiabá.
Afinal, é a terra que me deu dois filhos, Yuri e Ygor. Quer coisa melhor do que isso?
Eder Freitas, pai de Ygor “RedBert” Freitas
Capítulo I: A família
Acima do momento em que a LOUD destruía as últimas torres e o Nexus da paiN Gaming na quinta partida da grande final da Primeira Etapa do CBLOL 2024.
Acima do momento em que levantava e extravasava toda a pressão que sentiu da torcida da paiN e da sua história recente naqueles cinco jogos.
Acima até mesmo do momento em que levantou a taça.
Para entender RedBert é preciso entender mais de Ygor Freitas. E nenhum destes momentos é melhor do que o abraço que o jogador deu em seu pai, sua mãe, sua tia e sua namorada logo após as comemorações.
Mais de 1500 quilômetros dali, em Cuiabá, sozinho no quarto da casa da família, Yuri Freitas se emocionava sozinho no seu quarto assistindo o irmão caçula exorcizar seus demônios e completar uma jornada de redenção.
“Dividimos o mesmo computador para jogar quando éramos crianças, mas quando estava completando o ensino médio e o Ygor o fundamental, resolvi focar mais nos estudos e deixar os jogos de lado. Ele seguiu jogando, e sinceramente não demorou muito para começar a receber convites de times e a disputar alguns campeonatos”.
Atualmente com 25 anos, RedBert na verdade surgiu no cenário com apenas 15 anos na Seven Wars de Brucer, esA e Baiano. Desde cedo sempre foi um talento do cenário que precisou aguardar seu momento de brilhar, pois não tinha idade o suficiente para assinar contratos profissionais mesmo em um cenário ainda amador.
Após idas e vindas dentro da Big Gods entre 2015 e 2016, época que teve sua primeira experiência em São Paulo durante a Segunda Etapa do CBLOL 2016, RedBert entrou para a Team Genesis em agosto de 2016, que se tornaria INTZ Genesis após chamarem a atenção da organização com um elenco composto por Vert, Shini, Envy/Marf, Absolut e RedBert. Vice-campeões do Circuito Desafiante e vencedores da Série de Promoção, a equipe precisou ser vendida pela regra de equipes irmãs no CBLOL (duas equipes da mesma organização não poderiam competir no mesmo campeonato).
Assim, Shini e Envy foram para a INTZ, e para seus lugares chegaram 4LaN e Brucer, e a equipe virou Team oNe na Segunda Etapa de 2017.
Aos 17 anos, RedBert deixou sua casa e sua família em Cuiabá, uma cidade de 600 mil habitantes, para ir para São Paulo com sua população de 12 milhões.
“A história do Ygor é muito parecida com a minha”, diz o pai, Eder. “Também saí de casa com 17 anos para fazer a minha vida. A diferença é que fui na cara e na coragem, sem nada nas mãos. O Ygor tinha uma experiência mesmo que amadora no LoL para se virar, e todo o apoio da família. A única coisa que pedimos foi para terminar o ensino médio. Na vida a única coisa que o ser humano não pode é ser uma pessoa frustrada. A partir do momento em que ele disse que era uma oportunidade única em sua vida, nunca que eu como pai ficaria na frente deste sonho dele”.
“Chorávamos todos os dias”, diz a mãe, Ana. “Filho longe de casa é complicado, ainda mais quando você não entende totalmente a profissão dele e o que tudo aquilo significa”.
De longe, pai, irmão e “mães” se preocupavam. Mães, no plural.
“Vim do Rio Grande do Sul para passar seis meses em Cuiabá com minha irmã depois que o Yuri nasceu, mas me apeguei e fui ficando, e depois que o Ygor chegou nunca mais consegui deixá-los”, diz Araci, tia de RedBert. “Os dois são como filhos para mim, e ambos sentem o mesmo por mim, pelo que sempre falam”.
“É ditado falar ‘você só tem uma mãe’, mas a nossa tia é como se fosse o nosso porto-seguro”, diz Yuri. “É igual o sentimento da nossa mãe. É como ela falou no tweet para a torcida da paiN, ‘Os meninos só não nasceram de mim’, mas todo o amor é igual. Ela abriu mão da vida inteira para cuidar de nós. Não existe entrega de amor maior do que essa”.
Capítulo II: A carreira
Felizmente, para RedBert e sua família, o choque do que tudo aquilo era para o filho aconteceu rápido. Pela primeira vez na história do CBLOL, uma equipe que subia do Circuito Desafiante no Split anterior vencia a elite logo no Split seguinte. Em um ginásio do Mineirinho lotado, RedBert e a Team oNe desbancaram a paiN Gaming de Mylon e Kami na final por 3-1.
“Foi um choque de realidade para todos nós. O ginásio estava lotado e tudo era muito grande, não tínhamos noção do que tudo aquilo significava e aos poucos fomos entendendo. Naquele dia, a torcida da Team oNe era praticamente as famílias dos jogadores, o resto do ginásio inteiro torcia para a paiN”, diz Ana.
“Foi quando caiu a ficha para todos nós mesmo”, diz o irmão, Yuri. “Uma proporção totalmente diferente do que até eu mesmo imaginava daquilo que eu e ele jogávamos no quarto da nossa casa. Quando vi ele lá com o troféu na mão, sorri e pensei ‘Ele está bem. Ele se encontrou’. E felizmente seguiu um começo de carreira incrível com muitas vitórias”.
De fato, após um início de 2018 turbulento no qual a Team oNe foi rebaixada no Split seguinte ao seu título, RedBert entrou na INTZ para a Segunda Etapa daquele ano, quando venceu a paiN Gaming na Série de Promoção e manteve os Tradicionais no Circuito Desafiante. Em 2019 foram duas finais de CBLOL, com um título em cima do Flamengo de Robo, Shrimp, Goku, brTT e Luci e um vice. Em 2020, mais um título, desta vez sobre a paiN de Robo, Cariok, tinowns, brTT e esA. Três títulos brasileiros e quatro finais nos primeiros quatro anos de carreira.
Foto: Riot Games
No entanto, na segunda parte de sua carreira, RedBert não venceu títulos pelo Flamengo ou FURIA. Caiu nas semifinais em três dos quatro Splits disputados até se deparar com o maior ano de provação de toda a sua vida, 2023.
RedBert entrou para a FURIA no elenco que rapidamente foi apelidado de “SuperFURIA”, com fNb, Ranger, Envy, Netuno e Maestro. A equipe, no entanto, nunca pareceu verdadeiramente se encontrar dentro do Rift. Após um Split e um quarto lugar, Ranger perdeu espaço para Goot e saiu da equipe. No seguinte, a FURIA terminou a fase de pontos em primeiro lugar, mas caiu na final da chave inferior para a eventual campeã LOUD e terminou em terceiro.
Já no primeiro Split de 2023, foi a vez de Netuno deixar a equipe e Trigo entrar em seu lugar. Tentando alternativas em meio a resultados que não vinham, a FURIA não esperou o final do campeonato para fazer alterações. RedBert foi movido para o banco de reservas e, para não ficar parado, pediu para disputar o CBLOL Academy, mas após duas partidas na fase de pontos, não jogou mais pela organização.
Tentando ares diferentes, no segundo Split de 2023 RedBert foi contratado pela KaBuM! Esports, e o resultado não poderia ser pior: último lugar do campeonato com uma vitória e dezessete derrotas, igualando a pior campanha da história da franquia do CBLOL com a Rensga de 2022.
Não só profissionalmente RedBert sofreu, como em sua vida pessoal também foi a época em que descobriu após análises psiquiátricas que tinha TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Um resultado que colocou luz em diversas dificuldades sentidas ao longo da vida e da carreira, que chegou em um momento extremamente delicado para o jogador.
“O que se fala para acalmar o coração de uma pessoa que está longe?”, se perguntava o irmão Yuri. “Sinto falta todos os dias da companhia do Ygor. Já assistia ele, mas voltei a jogar para tentar manter a nossa conexão e falar mais com ele, mostrar que estou por perto mesmo estando longe. Ver aquele momento delicado de descoberta de uma pessoa que saiu cedo de casa foi muito angustiante para todos nós, mas ao mesmo tempo, tentávamos não demonstrar muito isso para não preocupá-lo, já que nos afetava muito. Ele é a extensão do nosso coração”.
“A verdade é que chorávamos todos os dias”, diz Araci, emocionada. “O Ygor não é de falar muito, sempre diz que está tudo bem para não nos preocupar, e nós nos controlamos em falar as coisas para ele para também não preocupá-lo, mas no fundo acho que todos sabemos o que estamos sentindo. Eu olhava a carinha dele depois de cada derrota na KaBuM e… Desculpe, é difícil falar”.
“As pessoas não têm ideia o que eles passam ou o que nós, como família, passamos”, diz o pai, Eder. “Como pais, nos preocupamos e queremos todas as informações e sempre falar com ele, mas ao mesmo tempo entendemos que a profissão dele requer espaço e crescimento sozinho, pois é algo muito único. Não adianta ligarmos todos os dias ou estarmos em São Paulo direto. Ele não tem tempo, precisa treinar, precisa ter a cabeça limpa para treinar, voltar para casa e treinar de novo, estudar, jogar de final de semana”.
“Ficamos amarrados na distância, descobrindo as coisas aos poucos, não entendendo o que é verdade completa e o que ele está tentando não nos preocupar. A angústia dos resultados, todas as mensagens de ódio que vemos na internet direcionadas a ele, como ele está reagindo a tudo isso. Você vê o seu filho tentar, e tentar, e tentar, e semana após semana é uma derrota a mais na tabela e as coisas não funcionam. Não dá. O coração vai junto”.
Ao final do CBLOL com a KaBuM, já fora dos planos da organização e com sua carreira inteira em risco, Ygor decide viajar para a Coreia do Sul e fazer um bootcamp para tentar atrair equipes.
O custo? Um presente de aniversário.
Capítulo III: O amor
Rayssa conheceu Ygor através de Brucer, companheiro de Team oNe, em 2017. Foi apenas em 2018 que despretensiosamente ficaram juntos durante o carnaval. Ygor estava em um momento de transição de sua carreira, a saída da oNe e entrada na INTZ, e Rayssa estava focada em seu vestibular.
Os primeiros meses do relacionamento foram de aprendizado para Rayssa, que conhecia um pouco de LoL, mas tinha a mesma visão que muitos têm de pro players: uma rotina de fama e jogo, quando a realidade é bem diferente. “Muito trabalho, uma pressão imensa e o convívio com a frustração e a felicidade de maneira muito conturbada”, diz.
Apesar de começarem devagar, após cerca de um ano de relacionamento os dois decidiram morar juntos. Ygor já não suportava a rotina de gaming house e Rayssa gastava mais de duas horas para ir e voltar do trabalho. Mesmo jovens, ela com 19 e ele com 20, decidiram sentar e conversar acerca da decisão, e apostaram suas fichas que o relacionamento funcionaria. Afinal, com o CBLOL acontecendo de sábado e domingo, Ygor já não tinha tempo para vê-la em sua rotina caso não morassem juntos.
Foto: Reprodução/Instagram @raybanti
“E na verdade, apesar de termos essa certeza sobre a nossa decisão para o relacionamento, uma grande parte também era para os dois conseguirem de fato focar no trabalho e crescermos juntos. Isso sempre foi muito claro para nós”, diz Rayssa. “Se não morássemos juntos, teríamos que terminar, pois não estava sendo sustentável para o relacionamento. Juntamos isso com o fato de fazer sentido para cada um individualmente e tomamos a decisão”.
“Mas o começo foi conturbado. Nunca chegamos a brigar, mas eu trabalhava, estudava e no meu tempo livre queria ficar com ele. Já ele ia para o Office, treinava e, quando voltava, sentava no computador para jogar Solo Queue ou assistir VOD sozinho. Precisou de muitas conversas entre nós para entender que a rotina dele não era igual à minha, que quando acabou o trabalho, acabou. Ele é um atleta, essa mentalidade precisa estar no dia-a-dia dele em tudo o que faz, e só na convivência eu entendi isso”.
Enquanto via Ygor avançando em sua carreira, Rayssa nunca deixou de apoiá-lo. Inclusive, entendia às vezes melhor do que ele mesmo algumas visões de futuro, como quando trocou a INTZ pelo Flamengo e começou a ser extremamente pressionado pela comissão técnica chefiada pelo turco Pades. “Ali vi que poderíamos ter problemas para ele conseguir dar o próximo passo”.
“O Ygor sempre teve muita dificuldade de colocar as coisas pra fora, expôr o que estava guardando, saber o que estava sentindo, se é raiva, se é frustração. Como namorada dele, sempre tentei auxiliá-lo a entender os seus sentimentos, porque queria vê-lo na melhor forma possível. Foi só na FURIA, o time seguinte, que ele foi ter uma psicóloga individual para ele, e não coletiva para a equipe inteira, algo que mudou muito”.
“A psicóloga chegou à conclusão que ele estava muito machucado ainda da época de Flamengo, que ele era um cara muito sensível e que tinha problemas para mostrar o que está sentindo, talvez até por uma parte que vem do machismo de que ‘homem não chora’, e talvez ele se reprimia muito por isso. Ele começou muito bem na FURIA, mas não tinha resolvido os seus problemas. Ele achava que era algo de mecânica quando, na verdade, era psicológico. Na própria FURIA ele descobriu que tinha TDAH, e isso por si só se desenvolveu em outros desafios para ele se entender como pessoa”.
Para mim eu só queria ser o suporte dele. Não quero saber sobre o RedBert, quero saber sobre o Ygor. Queria tirar ele mentalmente desse lugar onde ele tem que entregar resultado sempre, lidar com a pressão da torcida, estar sempre no seu melhor nível.
Rayssa
Ao mesmo tempo, Rayssa sabe que não pode viver em função de Ygor. Cientista de dados, ela está no período final de sua entrega de TCC. Ao longo do relacionamento, entendeu que há momentos em que precisa se entregar mais para ambos e para a vida deles juntos, mas que em outros é Ygor quem se doa e fica mais próximo. Ainda acontecem desequilíbrios, flutuações que acompanham a vida de pro players…
Se você ganha tudo, pode quase nunca ter folga, e caso perca, às vezes está de férias de agosto até janeiro do ano seguinte. E foi o que aconteceu ao final do Segundo Split 2023, quando Ygor acabou 1-17 com a KaBuM e não teria seu contrato renovado.
Ainda tentando se reencontrar como Ygor, RedBert estava em um momento crucial em sua carreira.
“Estávamos com muito medo de ele não receber nenhuma proposta. Ele estava em um momento muito difícil, depressivo, usando humor como arma para se auto sabotar, e eu tentava ajudá-lo a ver o outro lado. E então surgiu a oportunidade de ele ir com o Micael (micaO) para um bootcamp na Coreia do Sul e ele veio me perguntar o que eu achava, mas lembro que ele estava preocupado de que, se fosse, passaria o meu aniversário longe de mim, e ele não queria. Eu também o queria ao meu lado, mas como que eu poderia ser egoísta com o sonho dele?”
Nem passou pela minha cabeça falar qualquer coisa que não fosse: você precisa ir, pode ser uma oportunidade única para mostrar para as equipes que você quer e está investindo em você mesmo, então vai, e depois você me dá um presente de aniversário.
Rayssa
A conexão Coreia do Sul - São Paulo - Cuiabá funcionou como um cabo de esperança. Ninguém precisou falar nada. Rayssa segurou as pontas, a casa, os gatos e a vida do casal. Da casa da família, pai, mãe e irmão torciam para o golpe de destino dar certo, enquanto a tia virava noites acompanhando o sobrinho escalar ponto a ponto a Solo Queue coreana - segundo ela mesma, chorando a cada PdL que Ygor conseguia.
Pouco precisamos falar sobre o banho de esperança, a felicidade e a festa de todos quando Ygor recebeu o convite da então tricampeã LOUD para substituir Ceos, o melhor jogador do Brasil em 2023, ou os desafios que passou durante o Split para se encaixar em uma equipe que já sabe como as suas peças funcionam, que tem uma torcida imensa e que sabe que falha é qualquer coisa que não seja o troféu do CBLOL.
Quis o destino que Ygor enfrentasse na final a paiN Gaming que já havia derrotado outras duas vezes em finais. Com uma torcida adversária que o escolheu praticamente a dedo para provocar.
Naquela final, não estava apenas a paiN e sua torcida. Estavam os problemas no Flamengo, a derrocada e o Academy na FURIA, a humilhação na KaBuM. Os problemas com TDAH, a desconfiança, a timidez, os problemas guardados dentro do peito e do coração.
E ele prevaleceu.
RedBert levantou a Taça do CBLOL pela quarta vez.
Ygor abraçou os pais, Eder e Ana, a tia Araci, e o irmão Yuri. Beijou a namorada, Rayssa.
Renascido.
Você leu a história de Ygor Freitas pela visão de sua família e namorada. Acompanhe abaixo uma entrevista exclusiva e especial feita com RedBert sobre sua caminhada até o título com a LOUD, e a reação do jogador aos depoimentos de sua família mostrados aqui.
Bruno "LeonButcher" Pereira
Jornalista de esports, acompanha o cenário competitivo brasileiro desde 2011. Ex-narrador de League of Legends, trabalhou na Riot Games, Omelete Company e atualmente é editor-chefe do Mais Esports.