Gravar um documentário de bastidores nunca é uma tarefa fácil. Ideias, assim como heróis e vilões, surgem e desaparecem conforme a dança acontece. Para a paiN Gaming, o começo difícil no CBLOL 2023, no qual a equipe chegou a ficar em nono lugar e com crise estabelecida, fez com que a equipe de conteúdo da organização precisasse de tato para lidar com o conteúdo do Inside the Rift, algo extremamente delicado.
A linha entre transparência com o público e proteção aos jogadores e organização é extremamente frágil. Basta uma cena ou fala para que tudo mude. Para a paiN, o final da história (pelo menos na fase de grupos) ser o primeiro lugar geral dá tranquilidade para o conteúdo ser publicado – o que talvez não tenha sido o planejamento inicial, mas as coisas mudam rapidamente neste tipo de conteúdo.
Mas deixando esses julgamentos de lado, gostaria de falar melhor sobre algumas lições de liderança que reparei nestes primeiros episódios do Inside the Rift.
O técnico além do jogo
Enquanto Dionrray sempre foi a figura mais próxima de contato com a torcida, por ser o responsável pelos drafts da equipe e outras coordenações dentro de jogo, o sul-coreano Xero assume um papel mais macro, gerindo os jogadores e sendo responsável pelas preleções antes dos dias de jogo.
Como figura de liderança, reparamos no primeiro episódio em Xero brincando com os jogadores e tentando deixá-los confortáveis com perguntas sobre sentimentos antes da estreia contra a LOUD. O que foi treinado e conversado já está na mente dos jogadores, o que ele precisa fazer no momento é apenas tentar gerir suas expectativas e toda a tensão e animação criadas para a estreia, tanto internas como externas, com a festa que a torcida fez na Arena CBLOL e no CT da paiN Gaming.
Mais sobre Xero depois, já que na partida a equipe foi atropelada pela LOUD, e aqui entra Tomás Hamence, CEO da organização.
Terapia de choque
Após o atropelo na estreia, os jogadores tiveram que blindar sua frustração para interagir com a torcida presente na volta para o CT, e logo depois a cena mostra Tomás conversando com os jogadores e sendo brutalmente honesto: “Perder ou ganhar não importa, o que importa é a humilhação, e nós novamente fomos humilhados. Não jogamos. É um processo e eu entendo isso, mas não posso permitir que sejamos constantemente humilhados desse jeito”.
Tomás falava, claro, de começar o ano com o mesmo sentimento de ter finalizado o CBLOL 2022 com um atropelo de 3-0 da LOUD em um Ginásio do Ibirapuera lotado de torcedores da paiN Gaming.
“Terapia de choque” é uma tática comum de liderança. Ela dói, porque traz consigo alguns dos piores sentimentos possíveis: tristeza, indignação, raiva, frustração. Mas para quem quer ser vitorioso, o caminho nunca será em linha reta. Diamantes são lapidados com extrema pressão. Quando a provocação e a cobrança vêm, da maneira correta, cabe ao jogador conseguir domar o instinto que o manda jogar tudo para o ar, responder, ficar cabisbaixo ou fazer corpo mole. Não é fácil. É preciso controlar o ego, ter profissionalismo.
Enquanto muitas vezes a terapia de choque funciona, no caso de Tomás julgo que o timing foi errado. Entendo que quis deixar as coisas claras desde o princípio, mas ele mesmo na fala disse compreender que era uma equipe em processo de desenvolvimento, com um novo jogador sul-coreano (Bvoy) ainda se acostumando ao país e aos companheiros, novas ideias de como jogar o jogo, um novo meta daquele do ano passado e muito mais.
Adicionar uma camada de pressão ainda maior a este desenvolvimento logo na primeira partida do campeonato – que Xero inclusive disse na preleção que não importava o resultado (“rebatido” por Tomás em sua fala com “realmente não importa o resultado, e sim a humilhação”) talvez não tenha sido a melhor opção. Se isso foi uma iniciativa isolada de Tomás ou em conjunto com a comissão técnica/psicológica da paiN, o documentário não deixa claro. Pode ser uma situação de policial mau (Tomás) e policial bom (Xero/Dion), mas ainda não acredito que foi benéfico para o time.
E então temos Cariok.
Dói porque importa
Em 21 de janeiro de 2022, entrevistei Cariok para o The Enemy após as saídas de Robo, Tinowns, brTT e Luci, e ele me disse que queria fazer mais pela camisa da paiN, realmente virar um ídolo na história da organização.
Um ano e dois vice-campeonatos depois, o stress mental e as cobranças públicas ao longo de 2022, junto ao começo abismal da equipe contra a LOUD, cobraram o seu preço quase que imediatamente. Ainda no estúdio do CBLOL, Cariok entra em discordância com Damage, um de seus amigos mais próximos, e ainda é possível ver Cariok com os olhos cheios de lágrimas na cena seguinte.
Depois de apenas o primeiro jogo do campeonato.
Chegando no CT da paiN Gaming, Cariok veste sua melhor máscara para cumprimentar os torcedores, posar para fotos e conversar com a torcida antes de encaminhar-se com a equipe para a reunião com Tomás (citada acima), Xero e seus companheiros.
Após as falas do CEO, Xero levanta de seu lugar e puxa a mão de Cariok, trocando de lugar com o Caçador enquanto diz “Para mim você é o personagem principal”. Com Cariok na cadeira onde o head-coach estava, o papel de liderança que Xero espera de seu jogador fica claro, e ele é convidado a falar virado para os seus companheiros e a comissão técnica.
Cariok fala em inglês e tropeça na ordem de seus pensamentos, com certeza ainda com muito na cabeça e lutando contra as frustrações internas. De frente para todos, o jogador está vulnerável, um papel difícil de assumir quando se é líder. Às vezes achamos que a liderança está apenas em mostrar força, mas uma equipe não é composta apenas de uma pessoa forte, e sim de cinco pessoas que sabem seu valor e estão dispostas a estender a mão para se ajudar caso seja necessário.
Xero dá tempo para Cariok se enrolar e ficar desconfortável, e quando julga suficiente, intercede e volta a dominar o papo – ainda mantendo Cariok em sua cadeira e voltado para a equipe. Liderar é aprender a ouvir a todos, independente da posição de cada um.
O documentário não mostra se cada jogador teve sua vez de falar como Cariok teve, mas de qualquer maneira a escolha por deixar o Caçador no conteúdo publicado mostra a criação de um personagem que precisa ser compreendido, porque a pressão só vai aumentar nos episódios seguintes.
No segundo episódio, o trabalho individual de Xero com Cariok fica ainda mais claro, quando o técnico o chama para uma conversa individual na praça em frente à Arena CBLOL. “O jogo é simples, eu só estou sentindo muita pressão para fazer tudo acontecer”, diz o Caçador. No dia seguinte, após nova derrota, Cariok diz para o técnico que está tentando se blindar de todas as opiniões alheias e da pressão para conseguir jogar o seu jogo, e a dica de Xero é a mais valiosa de todas: “Você precisa se importar, Cacá”.
Diamantes só são lapidados com pressão.
Um por todos
O último ponto que queria abordar é sobre a construção de uma identidade coletiva. Outro trabalho de Xero que vem à tona, quando todos os jogadores comentam sobre performances ruins individuais e dão notas para cada um do time. Ou quando dyNquedo cita que parece que sempre é ele que tem que fazer as coisas dentro de jogo – ao que Xero rebate com “mas você também está fazendo coisas óbvias”.
Achar que fazer simplesmente o nosso papel muitas vezes não basta. O problema é quanto sentimos estar fazendo mais do que os outros quando, na verdade, os outros também estão tentando fazer mais e não estão conseguindo. É fácil nos separar dos problemas coletivos quando parece que estamos entregando tudo, mas muitas vezes não estamos de verdade. Autocrítica é complicado, mas cria humildade, um recurso valioso para um time que quer ser campeão.
O corte da frase de dyNquedo para o choro de Cariok no carro mostra como a frase se conecta com a realidade. Jogar bem individualmente não basta. É preciso conexão, é preciso se importar com os outros também. Essa mudança de chave transformou a paiN de um time no nono lugar do CBLOL para a liderança da fase de grupos.
Para finalizar, vale lembrar que para cada boa história de superação de crise, há muitas outras no cenário que não tem um final feliz. Apenas uma equipe, cinco jogadores, comissão técnica, vencem o CBLOL. Isso não quer dizer que lições não podem ser aprendidas pelo caminho.
Gostaria de parabenizar a paiN Gaming pelo Inside the Rift. Procurei os créditos para nomear a equipe responsável pelo conteúdo, mas não encontrei tanto no vídeo quanto na descrição do vídeo.
Quem já leu textos meus ou assistiu aos documentários sabe o quanto eu gosto desse conteúdo mais profundo, e que sempre me dizem que hoje em dia as pessoas não vão consumir, já que queremos vídeos cada vez mais rápidos e curtos, que mal paramos para ler.
E aí eu vejo um conteúdo bem produzido, e tudo volta a fazer sentido.