MapHack é um termo famosíssimo para algumas pessoas dos anos 2000. Para muitos doteiros, encarar isso era parte de um ritual sagrado e diário pelo falecido cliente do Garena.
Primeiro, entrar em uma das 72 salas cheias com o termo “Brazil DotA Room” era difícil, principalmente se você estava em um grupo de amigos. Depois de vários minutos tentando, agora era a vez de entrar em um jogo sem que nenhum infeliz com lag atrapalhasse. Mas sempre tinha um infeliz com internet oscilando para cair bem no início da partida. “Tunna host” era o que mais se ouvia nessas horas. Mas tudo dava errado e lá vem o famoso “remake”. Você está de volta na tela inicial do Warcraft 3.
Mesmo quando todos os astros finalmente se alinhavam e tudo parecia dar certo, a partida já começava estranha. Você desconfia que o jogador do outro time estava usando sem escrúpulos o famoso “MH” — um dos programas de cheat do Warcraft 3 que permitia que o trapaceiro visualizasse todo o mapa. Era fácil desconfiar disso: ele sabia quando você estava chegando para um gank surpresa, acertava um puxão misterioso quando não era pra ter visão daquele lugar e tinha um sexto sentido absurdo para ler onde você estava pelo mapa.
Esse tipo de cheat é recorrente na história do Warcraft 3 e do DotA 1 (e alguns profissionais já admitiram terem usado no início da sua carreira), mas o MapHack também foi responsável por criar uma “corrupção” dentro do time de moderadores da plataforma do Garena. Uma história que envolve compra e venda de bans, dossiês e até mesmo a desistência de vários moderadores do Garena na época.
A popularização do DotA 1 no Brasil
Desde o lançamento do Warcraft 3: Reign of Chaos, lá em 2002, a comunidade de modders trabalha em projetos dos mais diferentes possíveis. O próprio DotA derivou de um mapa da época do StarCraft, o Aeons of Strife, que posteriormente chegou ao novo jogo da Blizzard com o nome de Defense of the Ancients. E muitos jogadores faziam a sua própria versão do mapa, até que finalmente reuniram as melhores ideias e heróis no que chamamos até hoje de DotA Allstars.
Até hoje ele é um dos “custom games” mais jogados do Warcraft 3. Inclusive na nova versão remasterizada do jogo, o Warcraft 3: Reforged, lançado ainda neste ano.
O único problema é que a internet, naquela época que o DotA surgiu, era horripilante para os brasileiros. Pra piorar ainda mais, o sistema online oficial do Warcraft 3 tinha um delay que beirava os 2 a 3 segundos de atraso e impossibilitava que os jogadores daqui aproveitassem o Dotinha da melhor forma.
Alguns tentavam a sorte e iam até a LAN house mais próxima pra jogar com seus amigos. Outros não tinham muita opção: eles tinham que enfrentar o delay massivo do servidor oficial ou passar por horas e mais hora procurando alguma outra solução. Nessa época surgiam as primeiras alternativas para isso, como a Eurobattle.net e o Hamachi, que simulava tudo como se fosse um grande ambiente em LAN. Mas, é claro, tudo online.
O Garena, uma empresa lá da Singapura que hoje publica seus próprios jogos e não tem mais nada a ver com o assunto, tinha uma plataforma que também fazia isso acontecer. Era muito famosa para o Doteiros do Brasil, mas também contava com suporte para vários outros jogos em LAN, como Age of Empires e até mesmo Counter-Strike. Mas nenhum deles reunia tantos jogadores quanto o Dotinha.
Por lá, existiam mais de 80 a 90 salas dedicadas somente para brasileiros jogarem DotA 1. Cada uma comportava 255 pessoas de uma vez só — e não era difícil que a maioria delas estivessem lotadas. Em determinados momentos do dia, mais de 20 mil pessoas podiam estar online somente na seção brasileira.
Mas também havia um problema nisso tudo: teve muito brasileiro que adorava trapacear sem dó no meio do rolê.
Como funcionava o MapHack no Warcraft 3
O MapHack é com certeza o mais famoso entre todos os hacks de Warcraft 3. Ele simplesmente some com toda a névoa do mapa e você consegue enxergar tudo. Mas tudo mesmo. Até mesmo unidades invisíveis, mesmo não podendo atacá-las.
Pra saber mais, fui até um amigo meu que jogava muito comigo nessa época e eu já sabia que havia usado o famoso. “Era até difícil encontrar quem não usava MapHack nessa época”, contou. “Teve uma vez que eu estava jogando e eu saí da visão do outro cara no bot enquanto ele me perseguia. Eu ia pra um lado e ele ia pra esse lado. Eu ia pro outro e ele também ia pra aquele lado. Aí chegou uma hora que a gente só mandou um ‘kkkkkk’ no chat.”
A ferramenta mais comum de MapHack tinha até mesmo um nome direcionado para o seu público: Garena Master. Tinha isso e mais um pouco, como desbloquear as funções VIP do Garena. Até hoje está disponível aí pela internet.
E muita gente usava. Muita gente mesmo. Em uma publicação em um dos grupos de DotA 2 no Facebook, perguntei quem jogava nessa época e que utilizava MapHack. Boa parte dos 258 comentários até a publicação dessa matéria é de gente confessando que usava. E não tinham vergonha de dizer isso. Outros até citaram benefícios de utilizar o MapHack, como saber o que os adversários faziam pelo mapa. “Me ajudou muito quando fui pro DotA 2”, explicou um dos usuários do grupo.
Havia outro problema: não havia muitas formas diretas para identificar os trapaceiros. A mais efetiva para provar que alguém estava usando MapHack era terminar a partida e ir para o replay.
Lucas foi o último moderador brasileiro do Garena. Ele explica como era feito a análise dos trapaceiros e dos casos de denúncia no Garena.
“Pra identificar um MapHack você precisa de um fade click”, explicou o ex-moderador. Um fade click é, na tradução direta, um clique nas sombras. Era nada mais simples e direto do que um clique onde o adversário não tinha visão natural do jogo. Clicou na base do oponente com o mapa todo escurinho no replay? Opa, aí tem coisa. Existiam programas, inclusive, que você colocava na pasta do Warcraft 3 para denunciar ao vivo quando alguém clicava em você na fog.
Isso, ao lado de outras ações, causava o ban eterno dos jogadores do Garena. “Tinha o badmanner, que era quando alguém xingava você, com rage excessivo e tal, kitar, quando a pessoa abandonava a partida por qualquer motivo, e MH, que era o MapHack. E esse ban era permanente“, reforçou o ex-moderador.
Lucas iniciou as atividades na moderação com um moderador “em testes” depois de realizar vários reports e receber o convite da equipe da época. Embora os bans por MapHack fossem teoricamente eternos, era fácil criar outra conta no Garena. Mas o que poucos sabiam é que os infratores sequer ficavam alguns dias banidos com a conta.
A corrupção na moderação
“No Garena era assim: tinha as ‘rooms’ pubs, que a gente chamava assim porque era mais ou menos uma terra sem lei. Todo mundo entrava, escolhia o que queria, usava as ferramentas que quisesse, kitava, xingava de qualquer jeito. E tinha as rooms moderadas, que eram as High Level Rooms. De 1 a 7. Aos pouquinhos foi diminuindo”, completa. Essas eram as salas mais exclusivas do jogo, as mais disputadas e, consequentemente, as mais vigiadas.
A estrutura de moderadores também era bem dividida. Lucas conta que existiam vários níveis de moderadores: o Moderador Sênior, responsável por uma grande região como a América Latina, o moderador nacional, sendo um pra cada país, e os moderadores convencionais, sendo responsável por uma sala do Garena High Level Room. E tudo era voluntário.
Até hoje, a equipe de moderação do Garena mantém o contato entre si por meio de um grupo de WhatsApp para reviver histórias e saudades. Mas uma pessoa não está presente por lá. “Essa pessoa que não está lá, que ninguém gostava dele, que era autoritário e causava vários problemas, infelizmente era o responsável pela América Latina, do México pra baixo. Era brasileiro. Era o SA.Ranza. Ninguém nunca viu o rosto dele porque ele tinha vergonha, medo, enfim, não sei”, cita. Segundo Lucas, ele respondia diretamente com o escritório do Garena na Singapura.
“O Ranza tinha muito poder. Então ele podia abrir room, fechar room, acesso aos bots, acesso ao desbanimento, ele tinha acesso a tudo”, explica Lucas. “Várias pessoas que eram banidas por MapHack e racismo voltavam. E isso infelizmente fez o moderador líder da época, AyoroSs, sair. Ele e outras pessoas desistiram”, completa.
“Tinha um cara que se chamava KOF.Damage. Ele usava um avatar como se fosse um Seu Madruga do Velho Oeste. Ele era um cara que era banido todo dia por MapHack, que a gente sabia que usava MH, e todo dia ele reaparecia nas salas tirando sarro da gente. E falava abertamente que tinha contato do Ranza”.
“Ele vendia unban, fechava sala, fazia o que queria”, completa. Fazia ataques DDoS em quem não gostava. Bania até mesmo os próprios moderadores “de brincadeira” durante as reuniões pelo Skype, segundo Lucas.
E tinha até dinheiro rolando ali no meio. Afinal, era possível comprar até mesmo o “unban” da sua conta por meio de um site da internet, hoje resgatado graças aos poderes místicos da internet. O preço era singelo: R$ 20 e sua conta estava de volta ao jogo como se nada tivesse acontecido. Os relatos de jogadores em tópicos da época é que o responsável pelo site era o próprio Moderador Sênior da América Latina. A equipe de moderadores nunca comprovou isso; afinal, segundo Lucas, tudo era feito “por debaixo dos panos”.
O fim do Garena no DotA 1 brasileiro
Na época, a galera chegou até a abrir petições e abaixo-assinados contra o moderador. Ranza permaneceu na função até Lucas reunir um “dossiê” com todas as ações dele para outros representantes seniores espalhados pelo mundo, como os da América do Norte e da Europa. As denúncias iam de ataques DDoS, inclusive contra os membros da sua própria equipe, a criação de múltiplas contas para xingar as pessoas sem ser identificado e pedidos para “aliviar” bans de MapHack sem motivo algum.
A ação trouxe resultados e o moderador foi removido da equipe. Com o tempo, Lucas também foi subindo até ser o último representante da moderação do Garena no Brasil. Mas muitos da equipe já tinham desistido do Garena e migrado para outros jogos, como o DotA 2 e o League of Legends, que cresciam cada vez mais em 2013. Todos sem MapHack, inclusive.
Ele reuniu uma equipe com alguns moderadores restantes e tentou seguir firme na função até o dia em que abriu o fórum e deu de cara com uma placa de “estamos em manutenção”. A plataforma, um mês depois, retirou a sua função de LAN e virou um simples “mensageiro” entre os usuários.
Foi assim que, lentamente, o Garena deixou de existir para os Doteiros. E, junto com ele, mais de 20 mil jogadores brasileiros simultâneos de DotA 1 não tinham mais a sua plataforma favorita para jogar o saudoso Dotinha.
O próprio SA.Ranza tentou buscar a sorte em outra plataforma que, na época, era visto como uma alternativa “mais organizada” para os jogadores de DotA: o RGC, sigla para Ranked Gaming Client. Ele funciona até hoje, aliás, com atualizações que trazem todas as novidades do DotA 2 para o mapa do Warcraft 3.
Mas Ranza não teve a mesma sorte e, como registra uma conta no Twitter até hoje com o seu nome, ele mesmo tentou mandar uma série de ataques DDoS contra a plataforma do RGC depois de um tempo.
O DotA 1 brasileiro também já estava fragmentado na época. Muitos foram para a sequência feita pela Valve com tudo o que os jogadores sempre pediram para a Blizzard — incluindo conteúdos novos, ferramentas de reconexão e muito mais. Não havia muito sentido de continuar jogando o Dotinha raiz a menos que seu PC não aguentasse o DotA 2.
Mesmo assim, algumas plataformas sobrevivem até hoje com o DotA raiz. A comunidade russa continua extremamente ativa, principalmente atualizando o mapa original do Warcraft 3 com as mesmas funções que foram aplicadas no DotA 2. O mesmo acontece ainda no RGC, mas o suporte para os brasileiros foi se perdendo com o tempo. No Game Ranger, o pessoal daqui se encontra na versão 1.26 do Warcraft 3: The Frozen Throne pirata para jogar umas partidinhas.
E ainda temos o pessoal do Reforged, que também pode experimentar o DotA com os gráficos novos e remasterizados.
O MapHack ainda existe aqui e ali. Sempre aparece alguém suspeito novamente, mas não tão aberto como antigamente.
E o Garena? Bom, a empresa largou a mão do Dotinha, deu a volta por cima e fez seu próprio jogo de sucesso entre os brasileiros: o Free Fire.
Em nota para o Mais Esports, a equipe do Garena Brasil comentou que “não tem a nada a comentar” sobre a história.