Todo mundo diria que “ficar em segundo lugar é muito bom”, mas criamos uma cultura em que isso simplesmente não é bom – Ocelote, CEO da g2 Esports
Anos atrás, quando comecei os meus estudos sobre cultura organizacional numa das disciplinas do meu quarto período da graduação em Psicologia, não tinha praticamente nenhum contato com esports, de longe como tenho hoje. Na época, grande parte do conteúdo tratava da cultura de grandes marcas e empreendedores que nada tinham a ver com o tema. Bem, basicamente o que aprendi foi que “Cultura é um sistema de valores compartilhado pelos membros de uma organização que a diferencia das demais”.
É claro que as possibilidades de interpretação para o conceito são múltiplas, mas considerando os principais autores, existe um certo consenso relacionado aos elementos que compõe a cultura de uma organização, independente de como ela opere. Dentre eles: valores ou crenças, história, artefatos (o que inclui as vestimentas e uniformes, por exemplo), linguagem, hábitos, símbolos e rituais, como eventos e campanhas.
É interessante observar como cada organização cria e desenvolve a sua própria história e especialmente hoje, faço um paralelo direto com os esports. Sinto que ainda não desenvolvemos o hábito de pensar nos times como uma organização de fato, que conta com todos os elementos mencionados. Todos são fundamentais, ainda mais quando pensamos em sucesso. É essa a reflexão que quero trazer ao colocar a G2 Esports em pauta.
Constantemente discutimos as razões dos resultados positivos de algumas regiões e de certas organizações. Recentemente, especificamente ao olhar para a performance de equipes europeias nos campeonatos internacionais de League of Legends, temos assistido a uma evolução, que a cada dia fica mais evidente.
Neste ano a G2 fez história ao vencer o MSI, mas já mostrava alguns sinais da crescente quando eliminou a RNG do Mundial em 2018. Por sua vez, a tradicional Fnatic ficou com o vice campeonato no ano passado e também eliminou a temida equipe de Uzi da fase de grupos deste ano, se mostrando cada vez mais forte.
De forma geral a Europa passou por uma certa revolução nos últimos dois anos, especialmente no que envolve cultura e mindset. Os imports de jogadores coreanos começaram a ter menos importância ao passo que o desenvolvimento dos talentos europeus virou algo primordial para as organizações. Essencialmente, o novo pensamento era: “Precisamos parar de pensar em bater em coreanos com coreanos e começar a bater em coreanos com europeus.”
O líder
Carlos “Ocelote” Rodriguez Santiagos foi um jogador de League no passado. Ele ficou conhecido por jogar na SK Gaming como mid laner, mas se tornou um grande ícone do cenário europeu ao fundar a G2 Esports em 2013. Sua presença e participação como um grande líder para a organização sempre foi muito significativa. Ele é o cara que faz os memes, mas que apoia de maneira inconsequente seus jogadores. Também é quase como um sexto jogador, como já brincaram alguns dos casters da LEC.
Carlos foi uma das figuras centrais quando o assunto foi a transformação do cenário e o investimento em talentos europeus. Em suas palavras: Se você importar talentos, terá maior acesso a melhores talentos. Porquê? Porque há base de jogadores maior. O problema é que cada região é diferente em termos de cultura. Inferno (sic), mesmo países da Europa são muito diferentes em termos de cultura.”
Na mesma entrevista, o CEO abordou principalmente os problemas das importações: “Se você importa alguém da Coréia do Sul para morar em Berlim com dois jogadores dinamarqueses, talvez um jogador espanhol, isso é uma bomba, é uma bomba-relógio. As diferenças culturais são muito altas em algumas áreas, não se trata apenas de falar inglês. Definitivamente, é um problema em alguns casos. Problemas complexos geralmente exigem conversas complexas e você não pode ter uma conversa específica de alto nível se não fala o idioma. Esse é o número um.”
De fato, a Liga Europeia abrange um leque de jogadores de diversos países, portanto, diferentes culturas. Caps é dinamarquês, assim como o topo Wunder. Já Perkz é croata, Jankos é da Polônia e Mikyx é esloveno. Apesar das diferentes origens, todos os jogadores se comunicam perfeitamente em inglês, o que é uma grande vantagem de toda a região.
Construindo uma única cultura
Apesar da multiplicidade, é evidente a tentativa da organização de construir uma cultura forte, algo único e consistente. Carlos é o primeiro a reconhecer isso, ele entende que existe uma mensagem que a G2 passa para os seus jogadores e para o cenário europeu: “Os jogadores sabem que somos uma boa organização e o que esperar de nós. Eles atingiram seus picos de carreira conosco. Os melhores jogadores do mundo querem se juntar a nós porque sabem o que esperamos deles e sabem que queremos negociar o sucesso no sentido de entretenimento e também de ter objetivos ambiciosos competitivamente. Os jogadores adoram isso. Quero dizer, bons jogadores adoram isso. Jogadores medíocres não amam isso, e tudo bem”, finalizou.
Você pode não estar em dia com a história, mas a G2 sempre foi o time conhecido por performar o grande vilão, por defender uma narrativa ambiciosa e até tida por muitos como “arrogante”. De fato, eles construíram algo único. Não se trata apenas de uma história divertida e empolgante, mas é algo que é absorvido e difundido pelos próprios jogadores.
É comum que antes e após o término das partidas vejamos frases icônicas dos jogadores no Twitter como “Eu só mostrei 10% do meu potencial” ou mesmo “Pronto pro 3×0 hoje”. Esse é o tipo de coisa que para muitos soa como subestimação, mas que, para eles, é uma de suas maiores forças: o mindset.
Quando Ocelote aborda essa conexão, de maneira mais aprofundada, ele diz: “Muito disso é uma questão cultural. Eu sei que quando não estou na frente dos caras, eles estão fazendo o melhor que podem. Não apenas nos jogos, mas no conteúdo, nas mídias sociais, nas vendas ou o que quer que seja. Nós temos uma cultura muito forte de desempenho excessivo. Um alto limiar de padrões. Isso leva ao resultado, onde não é suficiente obter o 2º lugar no MSI, por exemplo. Todo mundo diria que “ficar em segundo lugar é muito bom”, mas criamos uma cultura em que isso não é bom”.
Apesar de ter um certo afastamento com os jogadores em questões de jogo, o CEO sabe como trabalhar com a sua equipe de uma maneira bastante fervorosa em momentos decisivos. Durante o atual campeonato mundial, sua presença é constante próximo à torcida, levantando a bandeira e incentivando o hino “Let’s go G2!”. A organização também criou uma série de uniformes caracterizados com os países de origem dos jogadores (Jankos foi MVP no último split da LEC e o uniforme temático da Polônia foi lançado na data do prêmio), além de outros especiais para os campeonatos internacionais.
A Consistência
Quando questionado acerca das piadas dos jogadores e dessa postura tão confiante diante dos jogos, Ocelote deixa bastante claro que a equipe segue a mesma cultura da organização: “É uma forma cultural de levar essa merda (sic) a sério, é o nosso trabalho e queremos vencer, mas estamos fazendo isso sorrindo, tentando coisas e sendo criativos. Eu ficaria bravo com jogadores se a atitude não refletisse que eles se importam, mas eu vou adorar se mostrarem essa atitude enquanto se divertem, sabe? Ou se saírem bem e não vencerem. Se você está se divertindo e não ganha e ainda assim sua atitude reflete que você está trabalhando muito, então ainda não vejo problema. Pessoas diferentes lidam com as perdas de maneiras diferentes”.
A forma como eles jogam demonstra esse mindset positivo. Eles fazem jogadas arriscadas e estão sempre sorrindo, eles frequentemente brincam uns com os outros durante as partidas e com o próprio adversário, mas não se trata de desrespeito.
“Eles costumavam me perguntar “Ei Carlos, podemos twittar isso?”, mas agora não. Eles sabem. Contanto que você não seja um ser humano terrível, não seja racista, misógino.. para qualquer pessoa com algum tipo de bom senso, alguém que possa ser considerado um ser humano “normal”. Isso é muito claro, e digo isso a eles. Caso contrário, você é um idiota e não há lugar para você dentro desta organização. Mas, se você quer se divertir e brincar, basta fazê-lo.”
Com a auto depreciação nas derrotas e a supervalorização nas vitórias, a equipe de League of Legends da G2 se tornou não só a equipe mais divertida de se assistir, mas também a mais consistente. Foram dois títulos regionais neste ano, uma vitória no MSI 2019 e agora são finalistas do Mundial 2019. A um passo do “Grand Slam”, algo ainda inédito no competitivo, a equipe europeia se prepara para enterrar seu último demônio, a equipe chinesa FPX.
O futuro do Ocidente
Ainda na época que a G2 foi finalista no MSI, Carlos afirmou em entrevista: “Você precisa ver o que significa para as outras equipes que uma equipe ocidental como a G2 possa vencer o MSI. Isso cria um hype para equipes como Origen e TSM e, de repente, eles acreditam que também podem vencer. Antes, havia uma chance de 0,01% e agora existe uma chance de 1%, o que é uma diferença significativa. Ser capaz de criar um novo mundo onde isso é possível é super impactante”.
Mas isso é tudo sobre cultura, é sobre a mensagem que você transmite para a sua staff, para os seus jogadores. Não existe uma receita ou um plano ideal, mas deve ser algo uníssono. Toda a transformação que a Europa vem vivendo nos últimos anos, o aumento no investimento de talentos, o apoio para desenvolver uma sólida base (especialmente com a EU Masters) e uma particular ascensão de uma cultura forte e auto confidente, que teve seu auge com a ascensão da G2 Esports, tudo isso tem ganhado relevância com os últimos resultados. Muitos dizem que a G2 é a última esperança do Ocidente, mas na verdade eu acho que é a primeira de muitas, dias melhores estão por vir.
A G2 enfrentará a Funplus Phoenix na final do Mundial 2019, que acontecerá em Paris no dia 10. Você pode acompanhar a cobertura completa da competição aqui no Mais Esports.